Adoro a sensação de terminar um livro de estreia e sentir que há ali uma voz muito própria, bem como muito caminho pela frente. Foi isso mesmo que aconteceu com Nem Todas as Árvores Morrem de Pé, de Luísa Sobral, que já tem uma carreira provada como cantora e compositora, mas que agora prova ter também muito talento para a escrita de romance.
Admito que, ao início, a premissa da história não me puxava muito: acho que já passei a minha fase de ler livros centrados na Segunda Guerra Mundial (e seus efeitos) e que, por isso, acabo a «fugir» um bocadinho a narrativas como esta. Mas ainda bem que foi votado pela comunidade do Livra-te como leitura extra para abril, caso contrário teria passado ao lado de uma história muito bonita, contada com uma beleza ainda maior.
Contado através das vozes de duas mulheres, Emmi e M., vamos acompanhar as duas histórias ao longo dos quarenta anos de divisão alemã. Fiquei contente por perceber que a autora decidiu focar-se nas vivências das pessoas que passaram a viver num país dividido em dois — com duas culturas muito diferentes —, já que há menos romances sobre este período da História. Gostei muito de conhecer estas duas mulheres, bem como o rol de personagens com que acabam a interagir. Além disso, e principalmente, a escrita da Luísa Sobral é a grande mais-valia desta narrativa, tanto pela maneira bonita como dá voz a pensamentos mais tristes, como pela própria estrutura que adotou para nos levar ao longo destas páginas.
Mas o ser humano adapta-se a tudo, nisso somos diferentes das plantas. As plantas só crescem onde encontram condições perfeitas para se desenvolverem. Nós, seres humanos, temos muitas vezes de criar condições perfeitas num lugar imperfeito.
Contudo, e apesar de ser uma história prenhe de empatia, não posso dizer que me tenha ligado completamente às personagens. Acho que faltou qualquer coisa — não necessariamente na construção do livro, mas para mim enquanto leitora, que faz com que não Nem Todas as Árvores Morrem de Pé não seja tão arrebatador como foi para algumas pessoas. De qualquer das formas, gostei mesmo muito da leitura e quero que a Luísa continue a escrever, a dar-nos mais maneiras bonitas de ver o mundo.
Também já leram esta obra de estreia? Se sim, o que acharam? Caso não tenham lido, aproveitem porque faz parte do Kobo Plus!
Há livros que valem pelo enredo, outros que valem pela escrita, e há ainda outros que valem pelas personagens. My Husband (PT: O Meu Marido), de Maud Ventura, entra certamente nesta última categoria. Já o tinha visto por aí — foi inclusivamente lido por algumas pessoas que conheço —, mas não o tinha incluído na minha lista de leituras até ser um dos livros de abril do Clube do Livra-te.
Com uma narrativa na primeira pessoa, Maud Ventura põe-nos dentro da cabeça da protagonista, uma mulher na casa dos quarenta que tem, aparentemente, a vida perfeita. Além de ser bem sucedida na sua carreira como tradutora, tem também uma casa bonita, dois filhos e um marido ideal. Aliás, a relação com o marido é a parte mais importante da sua vida — mesmo depois de quase duas décadas juntos, ela ainda está tão apaixonada como no primeiro dia, e faz questão de garantir que ele também.
Estamos perante uma personagem altamente obcecada pelo marido, que gira em torno dele e está constantemente a pensar nele, vendo coisas onde elas muitas vezes não existem. Nesse sentido, My Husband está muitíssimo bem executado: a espiral de pensamentos vai sendo cada vez mais problemática, e quando achamos que ela já não nos consegue surpreender mais, eis que pensa ou diz mais uma coisa completamente louca. Lá no meio, tem também algumas reflexões interessantes, seja sobre o trabalho de tradução, seja sobre a condição da mulher a partir do momento em que casa e tem filhos.
A construção da narrativa, apoiada da tensão de estarmos a acompanhar uma semana na vida destas personagens, foi a única coisa que não funcionou completamente para mim. Pela forma como o enredo está montado, dá a entender que chegará a um clímax interessante, mas não é isso que acontece — ou, pelo menos, não foi satisfatório para mim, acho que merecia um bocadinho mais de trabalho. Ainda assim, é uma leitura bastante fluida e vale a pena pelas personagens completamente chalupas.
E vocês, leram este livro com o Clube do Livra-te? Se sim, o que acharam?
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O que é o Clube do Livra-te?
É o clube do livro do podcast Livra-te — calma, não precisam de acompanhar o podcast para participar nas leituras. Todos os meses, cada uma de nós escolhe um livro para ler em conjunto convosco e vocês podem optar por ler a escolha da Joana, a escolha da Rita ou ambas. Depois, podem deixar a vossa opinião no grupo do Goodreads ou no Discord. Podem juntar-se a qualquer altura, venham daí!
Com o tempo, com a quantidade e com os diferentes géneros de livros que leio, é normal que nem todos me surpreendam ou me façam ficar completamente obcecada no momento da leitura. Normalmente, é quando decido ler algo fora da minha zona de conforto que isto mais acontece, e foi exatamente esse o caso com A Desobediente, a biografia de Maria Teresa Horta escrita por Patrícia Reis.
Não era que eu não conhecesse Maria Teresa Horta, escritora, feminista, e uma das três Marias das Novas Cartas Portuguesas. Eu sabia quem ela era, conhecia alguma da sua obra, tinha perfeita noção de que lutou toda a sua vida pelos direitos das mulheres. Mas uma coisa é saber dessa forma, simplesmente sabendo porque ela faz parte da nossa História. Outra completamente diferente é conhecê-la mais a fundo através de uma biografia, acompanhar o seu crescimento, o seu trabalho, os seus ideais.
A Desobediente é resultado de várias conversas de Patrícia Reis com Maria Teresa Horta e várias pessoas da sua vida, bem como de uma intensa investigação sobre a vida desta mulher. Nota-se perfeitamente que há uma intimidade diferente na maneira como nos leva até à infância da escritora, para ir construindo a sua passagem por este mundo, que foi quase sempre feita em forma de desobediência. Adorei conhecer mais sobre a vida de Maria Teresa Horta quando era criança e adolescente, de perceber como é que a infância e a adolescência moldaram a adulta em que se tornou.
Fiquei muito fascinada com este livro e com a forma tão envolvente como está escrito. Quando pegava nele, não conseguia largar; quando tinha de parar de ler, não era capaz de deixar de pensar em Maria Teresa Horta. Li-o de uma assentada precisamente porque me consumiu bastante, a acho que é provável que tenha o mesmo efeito noutros leitores. Sobretudo nesta altura, em que vemos tantos ataques às mulheres, vale muito a pena ler a biografia desta mulher e relembrar que a luta dura há muito tempo, e continuará a ser preciso batalhar muito. E fica aqui a sugestão de leitura como forma de celebrar o 25 de abril, claro.
Quem desse lado já leu esta biografia, o que achou? E quem não leu, ficou com vontade?
Não é segredo para ninguém que Piranesi, de Susanna Clarke, é um dos meus livros favoritos de sempre — foi uma das histórias mais originais que li nos últimos anos, e falo dela constantemente no Livra-te. Por isso mesmo, estava com muita vontade de me atirar a Jonathan Strange & Mr. Norrell (PT: Jonathan Strange & o Sr. Norrell), supostamente a grande obra da autora.
Acreditem que é preciso alguma coragem para começarmos a ler este livro: as suas quase 900 páginas intimidam, e o facto de ser fantasia também, mas «tirei o penso» de uma vez por todas e não me arrependi. Susanna Clarke leva-nos até ao início do séc. XIX e a uma Inglaterra onde a magia, no passado bastante difundida, parece ter desaparecido. Ainda assim, Mr. Norrell continua vivo e a praticar magia, ajudando o Governo sempre que é necessário. A ordem mantém-se até que um outro mágico aparece e ganha protagonismo. Falamos, claro, de Jonathan Strange.
Os dois passam a representar duas abordagens muito diferentes à magia: Mr. Norrell é conservador e académico, ao passo que Jonathan Strange é carismático e muito mais prático. Se, ao início, Strange se torna mágico sob a alçada de Mr. Norrell, rapidamente os dois vão entrar numa competição feroz, ao mesmo tempo que Inglaterra está em guerra com a França.
For, though the room was silent, the silence of half a hundred cats is a peculiar thing, like fifty individual silences all piled one on top of another.
A autora faz-nos mesmo acreditar que a magia existiu neste período, tal é a forma natural como a inclui nesta narrativa e na vida, tanto das personagens como social e política. Em vez de criar um sistema de magia altamente complexo, com seres e sociedades imaginários, Clarke faz o caminho contrário — não cria um mundo mágico, inclui a magia na realidade que já conhecemos. A par do desenvolvimento das personagens e da interação entre elas, esta foi, sem dúvida, a minha parte favorita do livro. Gostei também de ver que o humor da autora está muito presente na escrita, algo que já tinha notado em outras obras dela que li, mais curtas. Aqui, porém, o humor britânico brilha em todo o seu esplendor, fazendo-nos compreender toda a crítica e sátira implícitas em Jonathan Strange & Mr. Norrell.
Tenho pena de não ter lido este livro numa altura em que estivesse mais descansada, sem grandes responsabilidades ou preocupações, porque sinto que teria entrado ainda mais neste mundo, e que me teria deixado envolver ainda mais pela trama. Terminei o audiolivro com plena noção de que, daqui por uns tempos, quando estiver de férias e totalmente relaxada, vou querer lê-lo de novo. Por enquanto, fica a recomendação — se estão na dúvida sobre se devem ou não agarrar Jonathan Strange & Mr. Norrell, façam-no!