Há alguns meses, esta coletânea de contos de Conceição Evaristo chegou-me cá a casa, como oferta da editora, e eu achei que faria todo o sentido conhecer a escrita da autora através destas histórias. Sabia que a escrita era muito direta, e que por norma retrata temas bastante duros, e talvez por isso esperasse ligar-me mais a estes contos.
Uma coisa é certa: qualquer uma das narrativas presentes em Olhos D’Água tem a capacidade de nos mostrar o privilégio em que vivemos. Conceição Evaristo vai bem a fundo e mostra-nos a marginalização de muitos grupos de pessoas: fala-nos das prostitutas, dos que não conheceram nenhuma outra vida senão a de roubar, dos que traficam drogas, dos condenados a uma vida de pobreza. E há uma sensação de universalidade muito presente naquilo que escreve — embora retrate a realidade brasileira, poderia perfeitamente estar a falar de qualquer outra.
Gostei muito do propósito de dar voz a estas pessoas, de as fazer protagonistas das suas próprias histórias; e não como deveriam ter sido, com a imaginação própria da literatura, mas como realmente são as vidas de tanta gente. São contos muito crus e diretos, sem receio de melindrar o leitor — se vão conhecendo um pouco dos meus gostos, saberão certamente que este é o tipo de escrita onde me sinto mais «em casa». Então, porque é que terminei este livro com o sentimento de não ter realmente conseguido mergulhar a fundo nestas vidas?
Depois de muito pensar, acho que se deve ao facto de serem contos extremamente curtos. Apesar de se lerem rápido, pelo menos para mim fica sempre a vontade de ter passado mais tempo naquelas narrativas, de deixar que as personagens vão crescendo com o leitor. Sei que isso é complicado tendo em conta o formato, mas talvez, tendo em conta as minhas preferências, este não seja o modo ideal de ler Conceição Evaristo.
Da mesma autora, tenho cá em casa Canção para Ninar Menino Grande, um romance, e estou com curiosidade para ver se consigo apreciar mais a leitura. E vocês, já conheciam Conceição Evaristo?
Não sei se acontece convosco, mas há certos livros, dos quais sei pouquíssimo, mas que tenho a certeza de vir a gostar. OCaderno Proibido, de Alba de Céspedes, é um desses casos — vi-o um pouco por toda a parte, e algo em mim me dizia que iria ser uma boa leitura. Arrisquei tudo, escolhi-o para março no Clube do Livra-te, e não é que foi mesmo uma ótima experiência?
Passado na Roma dos anos 1950, este livro é o diário de Valéria, uma mulher que, num pequeno ato de rebeldia, compra um caderno onde passa a registar os seus pensamentos, aspirações, segredos e vontades — isto, claro, sem que o marido ou os filhos tenham ideia de que o faz. Neste caderno secreto, que esconde em vários sítios da casa para que nunca seja descoberta, conhecemos mais do que o dia a dia desta mulher: damos conta da condição da mulher naquela altura e constatamos que, em muitos aspetos, não é assim tão diferente do que acontece hoje em dia.
Aprender a compreender as coisas mínimas que acontecem todos os dias é talvez aprender a compreender verdadeiramente o significado mais recôndito da vida. Mas não sei se isso é bom, temo que não.
Através do registo da intimidade, OCaderno Proibido explora uma série de temas que me interessam muito. Não apenas a condição da mulher, mas a dificuldade em quebrar esse padrão, as pequenas agressões que se mascaram de boas intenções, a tomada de consciência de uma grande dependência do sistema patriarcal em que vivemos. Fá-lo — e, para mim, esta é a maravilha do livro — falando de assuntos absolutamente mundanos e banais, com que qualquer pessoa se pode identificar. À semelhança de Melhor Não Contar, de Tatiana Salem Levy, de que já vos falei aqui, acho que este foi um dos livros que mais me fez pensar sobre o papel da escrita no meio disto tudo, sobre a forma como as mulheres precisam de encontrar um lugar onde sejam capazes de moldar a realidade, de a compreender, de a pôr em perspetiva. A escrita é esse lugar para muitas de nós.
Se gostam de narrativas sobre a vida comum, mas que dão o salto para um pensamento mais profundo sobre o mundo em que vivemos, então este é o livro certo para vocês. Quem desse lado embarcou nesta leitura connosco? O que acharam?
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O que é o Clube do Livra-te?
É o clube do livro do podcast Livra-te — calma, não precisam de acompanhar o podcast para participar nas leituras. Todos os meses, cada uma de nós escolhe um livro para ler em conjunto convosco e vocês podem optar por ler a escolha da Joana, a escolha da Rita ou ambas. Depois, podem deixar a vossa opinião no grupo do Goodreads ou no Discord. Podem juntar-se a qualquer altura, venham daí!
No palco existe uma rampa, o ator percorre essa rampa em todas as cenas e, no fim, salta. Sísifo: Ensaio sobre a repetição em sessenta saltos é um monólogo escrito e protagonizado por Gregório Duvivier, que esteve em cena em Portugal no final de 2019. Porque é que só vos falo desta peça agora, perguntam vocês? Porque a sorte assim o ditou: de todos os livros que estavam na minha prateleira por ler, este foi o selecionado aleatoriamente.
Na altura não fui ver a peça, e só agora tenho noção daquilo que perdi. Começando pelo início: Sísifo: Ensaio sobre a repetição em sessenta saltos inspira-se precisamente no mito de Sísifo, um rei condenado a empurrar uma pedra monte acima por desejar ser imortal, pedra essa que cai quando chega ao topo, num processo que se repete até à eternidade. É frequentemente usado para descrever trabalhos ou tarefas árduos, repetitivos ou, por vezes, destinados ao fracasso.
Mas a questão é que as coisas são mesmo regidas pelo mistério. É um milagre que exista a vida, e que cada um de nós nasça. Não necessariamente um milagre religioso, mas certamente um milagre matemático. Estatisticamente, é como se todo mundo que nasce já tivesse ganhado numa loteria antes de morar no útero da sua mãe e a gente se esquece disso e passa a vida temendo a morte e não sabendo lidar com as coisas quando acabam. Mas se a gente se lembrar que nascer é tão improvável quanto glorioso, é possível encarar o envelhecimento e a morte como uma inevitabilidade bonita dentro do milagre fundador que é a vida de cada um. Pra mim, isso também vale para o fim do amor.
Neste ensaio em sessenta saltos, Gregório Duvivier e Vinicius Calderoni transpõem o mito de Sísifo para o palco e para a vida real e atual, para as coisas por que temos de passar se queremos sentir-nos realizados. Ou, de certa forma, para a ilusão dessa aparente necessidade de sofrimento prévio, através do qual será necessário passar para atingir a verdadeira felicidade. É um texto trágico-cómico que, a cada salto, nos faz refletir sobre o que valorizamos na vida, e os caminhos que percorremos.
Gostei muito de ler uma peça de teatro, algo que raramente faço, e deixou-me o bichinho para ler mais algumas. Tenho cá duas de Shakespeare, mas fica a porta aberta para que me sugiram outras, mais ou menos conhecidas. Quais são as vossas favoritas?
Andrew O’Hagan não é um nome desconhecido por estas bandas: Mayflies foi uma experiência de leitura muito bonita para mim, pelo que antecipava que o novo livro do autor, Caledonian Road, fosse igualmente bom. Sendo bastante direta: não foi. Aliás, acho que até posso dizer que se tornou uma das leituras mais penosas dos últimos tempos.
Estava à espera de encontrar uma narrativa emocional, mas, em vez disso, encontrei um livro que, apesar de demasiado longo, andou sempre à volta das mesmas ideias. Caledonian Road acompanha Campbell Flynn, um estudioso de História de Arte e biógrafo de Vermeer, que vê a sua vida aparentemente perfeita a desfazer-se demasiado depressa. Cheio de problemas financeiros, decide escrever um livro de autoajuda para homens, encontrando alguém que possa fingir ser o autor. Desenvolve também uma amizade com um jovem estudante, e é a partir daí que tudo começa a mudar realmente — à medida que as diferentes áreas da sua vida se encontram, certos segredos começam a vir ao de cima.
Até gostei dos primeiros capítulos e estava genuinamente interessada nesta ideia de um autor que escreve um livro que sabe que vai vender, mas no qual não acredita, e isso para mim teria sido mais do que suficiente para desenvolver a narrativa. Acontece que o autor quis pôr demasiados temas num só livro, não dando grande profundidade a nenhum deles. A história passa-se durante a pandemia da Covid e o início da invasão russa na Ucrânia, e deu-me a sensação de Andrew O’Hagan querer desenhar um quadro completo do que é ser um homem de meia idade nesta altura, mas esqueceu-se da parte em que dava real profundidade às personagens.
Caledonian Road leva-se demasiado a sério para ser uma boa sátira, mas é demasiado caricatural para funcionar como um romance que pretende espelhar o «estado da Nação». No final, fiquei com pouca vontade de explorar mais a obra do autor — Mayflies continua no meu coração, contudo vou pôr Andrew O’Hagan de lado por enquanto. Já tinham ouvido falar deste livro?