Será possível que tenha encontrado um dos favoritos do ano logo às primeiras leituras? Pelas constantes recomendações, já sabia que ia gostar de As Long as the Lemon Trees Grow (PT: Onde Crescem os Limoeiros), de Zoulfa Katouh, e foi por isso que o escolhi para o Clube do Livra-te de Janeiro. Além disso, faz parte da Ultimate Livra-te TBR, que estabelecemos no terceiro aniversário do podcast, portanto foi um dois em um.
Zoulfa Katouh levam-nos para o contexto da Primavera Árabe, mais especificamente para o meio da Revolução Síria e da subsequente guerra civil. Salama Kassab, de apenas dezoito anos, é a protagonista desta história. Antes de o conflito se instalar, Salama era uma rapariga como todas as outras da sua idade — vivia no seio de uma família feliz, estudava Farmácia e até já havia combinações com um rapaz, com quem falaria eventualmente de casamento. De um momento para o outro, tudo isto muda e é nesse momento que a história do livro começa: a família morreu, tem apenas a companhia de Layla, a sua cunhada grávida, e Salama usa os conhecimentos do curso que estava a tirar para ajudar como voluntária no hospital de Homs.
Os dias de Salama dividem-se, então, entre cuidar dos feridos que aparecem no hospital em estados gravíssimos, e proteger Layla até conseguirem encontrar uma solução. Dentro da protagonista, surge então o dilema que vai orientar toda a narrativa: deve meter-se num barco rumo à Europa antes que a sobrinha nasça, ou deve permanecer em Homs, para ajudar como pode? Não é uma decisão que deva estar nos ombros de uma rapariga tão nova, e confesso que isso, a par de todas as descrições gráficas do que se passava no hospital, foi uma das coisas que mais me impressionou neste livro. Embora seja uma obra de ficção, não há como negar que muitas pessoas como Salama tenham vivido cenários assim (ou ainda piores).
Survivor's skin is a remorse we are cursed to wear forever.
Apesar de, com alguma distância, conseguir identificar alguns pontos da narrativa que foram demasiado esticados, ou outros em que gostaria de um desenvolvimento diferente, a verdade é que esta foi uma leitura primariamente emocional para mim. Senti-me mesmo muito ligada às personagens, adorei a forma como todo o contexto histórico é transmitido ao leitor, e estive sempre muito investida em tudo o que estava a acontecer. Até o facto de ter adivinhado o plot twist do livro foi secundário — como está bastante bem executado, não perturbou em nada a minha experiência de leitura.
Creio que, hoje mais do que nunca, com a situação extrema que vemos acontecer na Palestina, é altura de ler livros como As Long as the Lemon Trees Grow — livros que nos mostram as condições em que tanta gente vive, as decisões que são forçadas a tomar, a sensação de perda de casa. Nenhum migrante gosta da ideia de ter de sair do seu próprio país, muitas vezes arriscando a sua própria vida por um vislumbre de uma realidade melhor, e esta história pode ajudar muita gente a compreender melhor as coisas por que estas pessoas passam.
Acho que já perceberam que recomendo muitíssimo este livro, certo? Leram-no connosco no Clube do Livra-te ou planeiam fazê-lo no futuro? Contem-me tudo!
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O que é o Clube do Livra-te?
É o clube do livro do podcast Livra-te — calma, não precisam de acompanhar o podcast para participar nas leituras. Todos os meses, cada uma de nós escolhe um livro para ler em conjunto convosco e vocês podem optar por ler a escolha da Joana, a escolha da Rita ou ambas. Depois, podem deixar a vossa opinião no grupo do Goodreads ou no Discord. Podem juntar-se a qualquer altura, venham daí!
No final do ano passado, comecei em busca da melhor forma de ler coletâneas de contos e de ensaios. Como já fui partilhando por aqui, o meu instinto — quiçá porque sempre li mais romances — era o de ler tudo de seguida, sobretudo se estava a gostar. Isso fazia com que confundisse as histórias na minha cabeça, com que não lhes desse espaço para viverem e ecoarem dentro de mim. Com A Sunny Place for Shady People (PT: Um Lugar Luminoso para Gente Sombria) encontrei uma abordagem que tem funcionado: escolho um livro de contos (ou ensaios) para ler em cada mês e leio apenas um a cada manhã — voltei a fazê-lo com Five Tuesdays in Winter, de Lily King, e resultou muito bem.
Já tinha lido Writers & Lovers (PT: Escritores e Amores) há uns anos, e tinha gostado bastante. Sei que não é um livro muito consensual, mas resultou bastante bem para mim, e estava com vontade de explorar mais da escrita da autora. Five Tuesdays in Winter reúne dez histórias, na sua essência bastante diferentes umas das outras; ainda assim, une-as o facto de serem todas sobre pessoas normais, que deparam com questões normais.
Adults hid their pain, their fears, their failure, but adolescents hid their happiness, as if to reveal it would risk its loss.
Gostei que Lily King explorasse diferentes vozes e diferentes narradores, que se trouxesse protagonistas jovens e velhos, homens e mulheres, na primeira pessoa e omnipresentes. Acredito que estas histórias sejam também uma maneira de exercitar o músculo da escrita, de testar abordagens. Como em todos os livros de contos, alguns tiveram mais impacto em mim enquanto leitora do que outros — e gostei especialmente de três deles. Five Tuesdays in Winter, a história que dá nome ao livro, relata a paixão secreta que um dono de uma livraria tem pela mulher que contratou para trabalhar com ele; Hotel Seattle retrata o amor que um homem gay manteve em segredo pelo seu melhor amigo durante anos, e a oportunidade que surge de finalmente pôr tudo cá para fora; e The Man at the Door, provavelmente a minha favorita, é uma história sobre maternidade e escrita, e sobre a forma como as escritoras são encaradas pelos seus pares. Teria lido este último conto em formato romance, caso a autora quisesse estendê-lo.
Não diria que é uma coletânea imperdível, mas pode funcionar muito bem para vocês caso já tenham lido algo de Lily King e tenham gostado da escrita (mesmo que o enredo não vos tenha convencido). Para mim, foi o impulso de que precisava para continuar a explorar a obra da autora! Já agora: que mais livros de contos me recomendariam?
Já tinha passado por este livro algumas vezes — tanto fisicamente, em livrarias, como nas minhas pesquisas por novidades, já que foi finalista do International Booker Prize de 2024. Depois de termos falado sobre ele num episódio do podcast, a Joana decidiu escolhê-lo para o Clube do Livra-te em janeiro e eu fiz dele uma das primeiras leituras deste novo ano.
Os Detalhes, de Ia Genberg, é uma daquelas histórias movidas a desenvolvimento de personagem e não tanto a enredo. A nossa protagonista e narradora, confrontada com um acesso de febre que a obriga a estar na cama, decide reler um livro que é importante para ela. Rapidamente percebemos porquê: foi-lhe oferecido por Johanna, uma ex-namorada, que agora é locutora na rádio e com quem deixou de manter contacto, mas que recorda durante largas páginas. Leva-nos numa viagem pelo início da relação, pelos livros que as uniam, pelo fim inevitável. Segue-se o mesmo exercício com outras três pessoas que foram importantes na sua vida: Niki, uma amiga que desapareceu sem deixar rasto; Alejandro, que muda a sua vida; Birgitte, uma mulher ansiosa.
Não tenho qualquer problema com livros que são mais vibes do que outra coisa, especialmente se proporcionarem boas bases para nos pôr a refletir sobre os mais variados temas. E embora não tenha sido um livro arrebatador, pelo menos não a nível emocional, fez-me pensar muito acerca da forma como as relações que estabelecemos com os outros nos ficam marcadas, e sobre como as recordamos depois, transformando-as em histórias que contamos a nós mesmos e aos outros.
A escrita é bastante direta, o que contribuiu para que me sentisse quase sempre afastada emocionalmente das personagens, mas teve bons efeitos na racionalização dos temas e das relações que a protagonista estabelece com quem a rodeia (ou rodeou). Uma nota final para a tradução do sueco para português, que me pareceu muito bem conseguida e fluida — nem parecia que estava a ler um livro traduzido.
Creio que é um daqueles livros que tem qualquer coisa para toda a gente, mas vão apenas se não se importam com livros em que o enredo é completamente secundário. Também acompanharam esta leitura no Clube do Livra-te ou ficaram com vontade de o fazer agora? Contem-me tudo nos comentários!
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O que é o Clube do Livra-te?
É o clube do livro do podcast Livra-te — calma, não precisam de acompanhar o podcast para participar nas leituras. Todos os meses, cada uma de nós escolhe um livro para ler em conjunto convosco e vocês podem optar por ler a escolha da Joana, a escolha da Rita ou ambas. Depois, podem deixar a vossa opinião no grupo do Goodreads ou no Discord. Podem juntar-se a qualquer altura, venham daí!
Pois bem, eis que chegamos à minha primeira leitura de 2025: O Acontecimento, de Annie Ernaux, a minha estreia na obra desta Nobel. Confesso que não tinha grande curiosidade em explorar os livros dela, mas este fazia parte da Ultimate Livra-te TBR, uma lista de livros sugerida pelos ouvintes do podcast para lermos durante os próximos tempos, e decidi arriscar.
Neste livro, acompanhamos uma jovem de 23 anos que descobre que está grávida quando ainda está a estudar na universidade, em 1963. Claro que, nessa época, em França como um pouco por toda a parte, a interrupção voluntária da gravidez era proibida e punida. Ainda assim, esta jovem toma na mesma essa decisão difícil, embora saiba que será complicado e que terá de se envolver em situações perigosas. Não é um livro extenso — não chega sequer às 100 páginas —, mas é um livro muito detalhado, que mostra ao pormenor não apenas «o acontecimento», mas o caminho tortuoso até conseguir chegar lá.
E, como sempre, seria impossível determinar se o aborto era proibido porque estava errado, ou se estava errado porque era proibido. Julgava-se em conformidade com a lei, não se julgava a lei.
A escrita de Annie Ernaux era aquilo que eu, de certa forma, antecipava: sem floreados e sem embelezamentos, uma forma crua e direta de pôr as coisas. Talvez o estilo da autora contribua muito para o impacto que este relato tem no leitor: Annie Ernaux conta exatamente como tudo se passou, sem esconder nada, sem imagens ou eufemismos. E, ao fazê-lo, consegue reproduzir aquela que é, certamente, a experiência de muitas outras mulheres — o facto de porem em risco a sua vida para conseguirem exercer uma decisão que deveria ser um direito.
Curioso como um livro publicado em 2000, escrito em 1999, e que fala de coisas que se passaram nos anos 1960, consegue ser tão atual. Numa altura em que vemos direitos a serem retirados às mulheres, sobretudo em países onde os considerávamos conquistados para sempre, acho que esta leitura se torna ainda mais importante e inevitável. Recomendo muitíssimo que o leiam, independentemente do vosso género.
E, sim, agora que entrei na escrita de Annie Ernaux fiquei com vontade de explorar mais. Que outros livros dela me recomendariam?