Se vão lendo as publicações aqui do blog com frequência, saberão que no último ano tenho feito escolhas mais conscientes no que toca às minhas leituras — um dos critérios tem sido explorar mais autores portugueses para ter um maior conhecimento do que se escreve por cá. Foi assim que No Tempo das Cerejas, de Célia Correia Loureiro, veio parar cá a casa e ganhou o seu lugar na pilha de livros para ler brevemente.
Escolhi este por ser o mais recente, sabendo que talvez não fosse o livro da autora mais indicado para mim. Passo a explicar: sei que a Célia já escreveu um pouco de tudo, do histórico ao contemporâneo, e haveria outros títulos dela com mais potencial de serem mais dentro do género que eu leio. Em No Tempo das Cerejas viajamos até à Lisboa dos anos 1920, 1940 e 1950, tudo através da conversa que a fadista Irene Silva Vaz tem com Serafim Almeida, um repórter a quem pede que oiça e escreva a sua história.
Começando precisamente pela forma como a Célia retratou Lisboa, diria que essa foi a minha parte favorita desta leitura. Nota-se que houve um trabalho de investigação e uma preocupação em passar vários detalhes da época, e tudo isso foi feito de forma natural e introduzido nos momentos certos. Também achei muito inteligente que as mudanças na cidade fossem sendo observadas principalmente por Serafim, que mora em Londres e regressa a Portugal muito esporadicamente — desse modo, esta personagem partilha o olhar de descoberta com o leitor.
A governanta da casa da minha mãe costumava dizer que as crianças só se lembram das coisas tristes, das pessoas que lhes batem e da fome que passam. Dizia que as crianças felizes mal se lembram da infância. Acho que tinha razão.
Apesar de ter adorado toda a atmosfera criada e a escrita da autora, senti imensa dificuldade em interessar-me pela história — e eu não costumo ter problemas em acompanhar histórias lentas. Não achei que o mecanismo de saltos temporais, da forma como estava feito, ajudasse a dar mais dinamismo, pelo contrário, achei que contribuiu para a confusão que fui sentido e para a sensação de estar sempre no mesmo sítio da narrativa.
De qualquer das formas, fico com imensa curiosidade em ler mais coisas da Célia, nomeadamente Até os Comboios Andam aos Saltos. Já leram alguma coisa da autora? Se sim, qual me recomendam para continuar a explorar a escrita dela?
Em setembro, eu e a minha amiga Patrícia (oi, amiga! 🙋♀️) começámos a trocar livros nos nossos jantares mensais. A ideia partiu dela: se já nos juntamos pelo menos uma vez por mês para comer e conversar, porque não aproveitar para levar um livro que tenhamos parado em casa para a outra ler? Pareceu-me logo uma boa ideia e I Love Dick, de Chris Kraus, foi o primeiro livro que ela me trouxe (eu levei-lhe A História de Roma, de Joana Bértholo).
Pelo título e pela sinopse, achei ao início que seria algo um pouco mais leve, quase a roçar a comédia romântica. Bastaram-me poucas páginas para perceber que se tratava de um livro muito diferente de qualquer outro que eu já li. Entre a sátira, a autoficção e o romance epistolar, conta a história da obsessão de Chris por Dick, um homem que conhece numa noite e ao qual ela e o marido passam a enviar várias cartas. Esta personagem nunca é realmente nomeada — a autora preferiu usar um pseudónimo para ele, apesar de outras personalidades da altura serem referidas.
É um livro de memórias fora do comum porque, na realidade, conta a história de uma obsessão sem nunca sabermos quanto destes relatos são verdade e quanto são exagerados para caber nas páginas. Gostei dessa dúvida constante, mas esperava que o livro tivesse um melhor equilíbrio entre as recordações, os pensamentos sobre relações e o próprio ambiente pessoal e social da autora. Infelizmente, foi para este último que a narrativa pendeu mais: há uma referenciação constante de pessoas e lugares que eu desconhecia, e que me foram apresentados como se fosse suposto saber exatamente quem/o que são. Ainda assim, a nota final ajuda muito a compreender este lado e fez-me terminar o livro numa nota mais positiva.
Friendship, as far as I'm concerned, is a delicate and rare thing that's built up over time and is predicated on mutual trust, mutual respect, reciprocal interests and share commitments. It's a relation that ultimately is lived out, at least as if it were chosen not taken for granted or assumed in advance. It's something that has to be renegotiated at every step, not demanded unconditionally.
De qualquer das formas, retiro passagens muito interessantes deste livro (como a que transcrevi acima), bem como algumas reflexões interessantes sobre o desgaste que advém do casamento. E fiquei com muita vontade de ver a adaptação para série pela Amazon, já que tem Kathryn Hahn e Kevin Bacon nos papéis principais.
Acho que I Love Dick é muito específico para que seja recomendado a toda a gente, mas se gostam de livros que desafiam géneros, então talvez possa ser uma boa leitura para vocês. Quem desse lado já tinha ouvido falar da autora?
Nunca tinha ouvido falar de Eliana Alves Cruz até Solitária me chegar cá a casa, num generoso envio por parte da nova editora À/Parte (muito obrigada!). Fiquei logo apaixonada pela capa e soube pela sinopse que se tratava de uma história contada a duas vozes: são duas mulheres negras, uma mãe e uma filha, que moram num quarto pequeno, na casa onde a mãe é empregada doméstica.
No início do livro, Mabel, a filha, tenta convencer a mãe a libertar-se daquele emprego onde os patrões são demasiado dependentes dela, muitas vezes a custo da própria liberdade de Eunice. A partir daí, leva-nos ao passado e mostra-nos como é viver assim, num condomínio de luxo, sem poder mostrar que se existe e sem ocupar mais espaço do que o pouco que lhes foi atribuído. Mais tarde, sensivelmente a meio do livro, mudamos de perspetiva e vemos as coisas aos olhos de Eunice, percebemos porque é que vai permanecendo ali.
Gosto muito de livros que dão voz às pessoas comuns, sobretudo às que infelizmente não têm essa representação nas histórias que consumimos, sejam elas em que formato forem. Mabel, Eunice e as outras personagens do livro, principalmente as que fazem parte do edifício Golden Plate sem realmente lhe poderem chamar casa, soaram-me todas bastante reais e são o reflexo das lutas que tantas pessoas enfrentam todos os dias. E, também, a forma como por vezes basta que uma pessoa questione e tente romper com os padrões para que, de repente, quem está à volta consiga vislumbrar um futuro diferente para a comunidade.
Quando alguém me pergunta se aconteceu alguma coisa grave, digo que sim e não. Não aconteceu nada, e não acontecer nada era grave. Sei lá porque todo mundo acha que tragédia acontece de repente.
Em geral foi uma excelente leitura, achei a escrita da Eliana muito escorreita — acho que há excelentes escritoras brasileiras contemporâneas para descobrir e esta é, sem dúvida, uma delas. A única coisa de que não gostei tanto foi do facto de as vozes das duas mulheres não serem muito diferenciadas. No fundo, lemos dois testemunhos na primeira pessoa, mas a forma como estas duas mulheres falam pareceu-me, por vezes, muito semelhante e sem grandes traços distintivos. Isso fez com que me fosse complicado entrar na segunda parte do livro, uma vez que as narradoras se confundiam na minha cabeça.
De qualquer das formas, recomendo muito este livro e fico com muita vontade de ler mais coisas desta autora. E vocês, já a conheciam? Ficaram com vontade de conhecer?
Sabem aqueles livros que vão estando no vosso radar, mas que, por qualquer motivo, nunca tiveram curiosidade em pegar para saber mais? Aconteceu-me isso com Vista Chinesa, de Tatiana Salem Levy, uma leitura que me chegou (e ainda bem) por ser a escolha da Joana para setembro no Clube do Livra-te.
Júlia, sócia de um escritório de arquitetura, está mergulhada em trabalho porque os Jogos Olímpicos de 2016 serão no Rio e ela tem um grande projeto de construção pela frente. Um dia, ligeiramente fora daquilo que costuma ser a sua rotina, vai correr no Alto da Boa Vista, uma zona onde a natureza ainda prevalece. A certa altura, é atacada por um homem que a viola e a deixa numa zona deserta. Não pensem que acabei de vos estragar o livro: é mesmo assim que a narrativa começa e tudo isto está descrito na sinopse.
Escrito em forma de carta para os dois filhos, que nasceram anos depois, este livro é sobre tudo aquilo que vem depois de um acontecimento terrível como este. É baseado em factos reais, e isso quase que nos dá a impressão de serem as próprias experiências de Tatiana Salem Levy a serem descritas, porque não haveria outra forma de saber tão bem o que se passa dentro de uma mulher que sofre um abuso desta magnitude. Diria que essa é a principal força deste livro: todo o trabalho de pesquisa e empatia que está por detrás da construção de uma história que poderia ser a de tantas mulheres que, de um dia para o outro, veem as suas vidas alteradas para sempre. E depois há o escrutínio, não apenas o próprio, mas sobretudo o da sociedade, o das pessoas que deveriam ter um pouco mais de sensibilidade, como a polícia.
Mas há coisas que, mesmo depois de terem acontecido, continuam acontecendo. Elas não te deixam esquecer porque se repetem todos os dias. É por isso que não tiro da cabeça que vocês sabem. Vocês habitaram a minha barriga, mamaram nos meus peitos, tomam banho comigo, dormem no meu colo, a gente se enrosca no sofá, então vocês sabem, como eu sei toda a vez que me olho no espelho. Só não conhecem as palavras.
Embora tenha gostado muito da forma como está escrito, e saiba que livros como este são extremamente necessários, em termos de experiência de escrita senti-me sempre um pouco afastada daquilo que estava a ser narrado. Isto não quer dizer nada sobre Vista Chinesa, provavelmente mostra que os leitores precisam de encontrar mecanismos de defesa para ler sobre certos assuntos. Isto faz-vos sentido? Também já passaram por experiências de leitura semelhantes? Contem-me tudo nos comentários!
----------
O que é o Clube do Livra-te?
É o clube do livro do podcast Livra-te — calma, não precisam de acompanhar o podcast para participar nas leituras. Todos os meses, cada uma de nós escolhe um livro para ler em conjunto convosco e vocês podem optar por ler a escolha da Joana, a escolha da Rita ou ambas. Depois, podem deixar a vossa opinião no grupo do Goodreads ou no Discord. Podem juntar-se a qualquer altura, venham daí!