Sim, este é o momento introdutório em que eu falo da minha obsessão pela Ann Patchett, uma autora que conheci já no final do ano passado e que não tenho conseguido largar. Depois de ter lido praticamente todos os seus livros de não ficção, está na altura de explorar todas as histórias ficcionadas que saíram daquela cabeça. Por isso mesmo, decidi que The Dutch House (PT: A Casa Holandesa) seria a minha escolha para inaugurar o Clube do Livra-te em 2024.
Pouco sabia sobre este livro, as informações que tinha foram-me todas dadas nas crónicas da autora: sabia que o audiolivro era narrado pelo Tom Hanks como consequência de uma amizade que se formou entre os dois, sabia que o quadro na capa foi comissionado de propósito para ilustrar um quadro que Ann Patchett inventou para a história e também sabia que foi difícil escolher a perspetiva certa para a narrativa. De resto, ia mais ou menos às cegas e ainda bem — gostei mesmo de ir conhecendo esta casa holandesa e os seus habitantes aos poucos.
Em resumo, The Dutch House conta a história desta casa, que, embora fique nos subúrbios de Philadelphia, pertenceu em tempos a uma família dos Países Baixos. Após a II Guerra Mundial, quando começa a enriquecer, Cyril Conroy compra esta propriedade e muda-se para lá com a mulher, Elna, e a filha, Maeve. O nosso narrador, Danny, é o seu segundo filho que nasce já na casa. Elna, incapaz de se ver repentinamente rica e com todas as mordomias, abandona a família e isso abre espaço a que, tempos mais tarde, apareça Andrea — uma madrasta determinada a mandar na casa e na família.
But we overlay the present onto the past. We look back through the lens of what we know now, so we're not seeing it as the people we were, we're seeing it as the people we are, and that means the past has been radically altered.
Maeve e Danny acabam afastados e a terem de depender apenas um do outro, o que dá espaço a que observemos o desenvolvimento da sua relação ao longo de cinco décadas. Mas a narrativa não depende apenas disto: The Dutch House apresenta um leque de personagens muito importantes e bem trabalhadas, tão reais que ficamos sempre à espera do que vão fazer a seguir. Diria até que a casa em si é uma destas personagens, quiçá possa até ser considerada principal.
Além de um enredo muito bem pensado e de personagens bastante bem desenvolvidas, resta ainda deixar uma palavra final para a escrita de Ann Patchett. Assustava-me a ideia de o livro ter um ritmo um pouco mais lento. Contudo, as reflexões que faz e a maneira como consegue tornar interessante até a vida mundana, tornam The Dutch House uma história que ficará durante muito tempo comigo. Quem já leu, concorda? Quais são os vossos livros favoritos desta autora? Contem-me tudo nos comentários!
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O que é o Clube do Livra-te?
É o clube do livro do podcast Livra-te — calma, não precisam de acompanhar o podcast para participar nas leituras. Todos os meses, cada uma de nós escolhe um livro para ler em conjunto convosco e vocês podem optar por ler a escolha da Joana, a escolha da Rita ou ambas. Depois, podem deixar a vossa opinião no grupo do Goodreads ou no Discord. Podem juntar-se a qualquer altura, venham daí!
Yellowface (PT: A Impostora) é o mais recente livro de R.F. Kuang, onde a autora foge completamente à fantasia — o género que habitualmente publica e pelo qual ficou conhecida — e decide explorar os meandros do mercado editorial. Estava com algum receio de que não correspondesse ao hype todo que tem tido nos últimos tempos, mas posso dizer que engoli completamente este livro.
June Hayward, a protagonista e narradora de Yellowface, é uma escritora pouco conhecida — o seu primeiro romance não teve o sucesso que ela almejava e acaba por se sentir inferior no meio de tantos outros jovens autores com sucesso. Entre eles, e mais importante, está Athena Li: um fenómeno do mundo editorial, a quem tudo parece correr demasiado bem. Não se pode dizer que sejam amigas, pelo menos June admite desde início uma certa inveja de Athena, mas vão-se encontrando aqui e ali. Até ao dia em que Athena morre de uma forma muito estúpida e June vê nisso a oportunidade de lhe roubar um manuscrito.
A partir daí, June fará tudo o que estiver ao seu alcance para publicar esse livro como sendo seu. Não vou contar mais sobre o que acontece, mas posso dizer que gostei muito do rumo que R. F. Kuang deu à história. Mais do que isso: amei a maneira como desenvolveu as personagens. June é uma protagonista detestável e não há momento algum em que o leitor sinta empatia por ela — adorei esta escolha, uma vez que sou fã de personagens principais moralmente dúbias. E o que dizer da dinâmica de amizade/inveja (a expressão inglesa frenemies seria até a mais indicada) entre Athena e June? É uma forma de relacionamento que é inerentemente feminina e vejo a acontecer muito em contextos assim, onde a relação pessoal se mistura com a profissional.
Every writer I know feels this way about someone else. Writing is such a solitary activity. You have no assurance that what you’re creating has any value, and any indication that you’re behind in the rat race sends you spiraling into the pits of despair. Keep your eyes on your own paper, they say. But that’s hard to do when everyone else’s papers are flapping constantly in your face.
Yellowface oferece várias reflexões sobre o que constitui efetivamente plágio, sobre apropriação cultural — June é branca e Athena é asiática —, sobre racismo, e fá-lo de uma forma sarcástica e mordaz. Ao mesmo tempo, levanta algumas questões sobre o mundo editorial que, embora aqui sejam vistas com a lente e dimensão próprias dos Estados Unidos, são possíveis de identificar em Portugal a uma escala menor. Se calhar é um pouco mais de nicho, mas gostei muito de identificar questões em que penso muitas vezes — o que faz um escritor? É a qualidade literária ou a máquina editorial a trabalhar por trás? Ou é uma mistura das duas coisas? Ou é pura sorte?
Writing is the closest thing we have to real magic. Writing is creating something out of nothing, is opening doors to other lands. Writing gives you power to shape your own world when the real one hurts too much.
Adorei a experiência de ler este livro e mesmo as coisas que carecem de uma melhor explicação — ou que acontecem de maneira mais ou menos conveniente para a narrativa avançar — acabaram por não me fazer tanta confusão, já que o ritmo do livro é bastante bom e convida a que seja lido de uma assentada. Recomendo mesmo muito, principalmente a quem tem interesse sobre o mercado literário ou a quem aprecia um bom narrador em quem não se pode confiar.
Será que é desta que avanço para a fantasia da autora, com Poppy War? Vamos ver! E agora quero saber: quem já leu Yellowface? O que acharam?
Tirando as doze passas, as tradições de passagem de ano/ano novo passam-me um pouco ao lado. Há, ainda assim, um ritual que gosto de manter: o de ler um livro curtinho no primeiro dia do ano. Por isso, calhou muito bem que tivesse comprado Medusa, de Jessie Burton, uns dias antes no aeroporto de Londres — aproveitando assim o belo sticker “buy one, get one half price”.
Estava com algum receio de ficar desiludida com o livro, principalmente depois de ter lido e adorado Stone Blind (PT: O Olhar da Medusa) de Natalie Haynes. Decidi, ainda assim, ir com mente aberta e acabou por ser uma experiência bastante prazerosa. Ao contrário do que acontece em Stone Blind, Jessie Burton escolhe focar a narrativa apenas na perspetiva e história da Medusa, sem dar grande importância às dinâmicas circundantes. Ou seja, acaba por ser também muito mais limitado no tempo: começa quando Medusa conhece Perseu e desenvolve-se apenas através dos diálogos entre os dois.
You see, remembering's a blessing and a curse. You can't erase your bad memories, but a life without regrets is a life unlived. What you remember and how you remember: it makes you who you are. Maybe you have a choice about that, maybe you don't.
O livro dá-nos, claro, o ponto de vista da Medusa e faz-nos empatizar com ela, questionando porque é que a associamos à monstruosidade. Mas, no que diz respeito à reinterpretação mitológica, senti que não acrescenta muito: conta a história mais ou menos como a conhecemos, só altera a lente com que a observamos. Ainda assim, acabo a avaliar a leitura como bastante positiva por causa da escrita: Stone Blind habituou-me a olhar para este mito com sarcasmo — que eu adoro —, mas Jessie Burton convida a que o façamos com emoção e empatia. A escrita é bastante melódica e bonita — e foi este ponto que me deu uma visão nova sobre esta história.
Para terminar, digo que fiquei muito curiosa com outras obras da autora — foi ela quem escreveu O Miniaturista, por exemplo —, mas depois de pesquisar um pouco percebi que não é assim tão consensual. Já leram alguma coisa dela? Se sim, recomendam-me que continue ou deixo passar?
Nutro um carinho enorme por John Boyne enquanto escritor e sei que podia explorar mais a obra dele porque dificilmente me desapontará. Tirando o clássico O Rapaz do Pijama às Riscas, já li A Traveler at the Gates of Wisdom (a minha primeira experiência de sempre no Kobo) e The Heart's Invisible Furies, que é um dos meus livros do coração.
Por isso, quando tive conhecimento de que iria lançar Water, o primeiro de uma tetralogia, soube que quereria lê-lo brevemente. Tinha tanta curiosidade, que fiz dele o meu último livro de 2023 — comprei-o no Kobo, uma vez que no Reino Unido ainda só existe a versão de capa dura e eu prefiro paperback. Mas bom, estou a divagar! Sobre Water: como disse, é o primeiro de quatro livros relacionados com os elementos. Os restantes — Earth, Fire e Air — sairão de seis em seis meses, até Maio de 2025, e é suposto que as histórias possam ser lidas individualmente e em qualquer ordem, apesar de relacionadas. Um pouco como acontece com a tetralogia das estações do ano, de Ali Smith.
Neste primeiro acompanhamos uma mulher, Vanessa Carvin, na sua chegada a uma ilha. Lá, passa a ser Willow Hale: a mudança de nome é indispensável para porque o objetivo dela é passar despercebida e viver isolada. Infelizmente, não consegue fugir do passado como gostaria, uma vez que os escândalos conseguem chegar mesmo aos locais mais remotos. Vanessa/Willow está envolvida num. Ou melhor: o marido está e ela, por consequência, também. Os meses que passará naquela ilha irlandesa serão suficientes para que a protagonista consiga fazer as pazes com a situação? Ou haverá mesmo coisas que não conseguimos perdoar a nós próprios?
Water has been the undoing of me. It has been the undoing of my family. We swim in it in the womb. We are composed of it. We drink it. We are drawn to it throughout our lives, more than mountains, deserts, or canyons. But it is terrible. Water kills.
Este pequeno livro junta duas coisas que adoro: a escrita emocional de John Boyne e toda a ambiência mais obscura da literatura irlandesa. Esta é, aliás, uma característica que o autor consegue imprimir muito bem na personagem principal: Vanessa/Willow é intrigante e, apesar de o livro estar escrito na primeira pessoa, é bastante críptica — dá-nos as informações certas no momento certo, conseguindo sempre manter uma aura de mistério.
Por fim — e sem desenvolver muito o drama em que a personagem principal está envolvida, para não vos estragar a leitura —, gostei muito dos temas que este livro explora. É certo que o luto é o principal, mas agradou-me sobretudo a maneira como são desenvolvidos outros: a culpa, o perdão a nós mesmos, o facto de as mulheres historicamente levarem por tabela quando os homens cometem erros. São poucas páginas (menos de 200), mas Water tem muita densidade e complexidade emocional para explorar.
No final ficamos também a saber qual é a personagem central de Earth, que sairá em Maio deste ano, um extra que eu achei muito interessante e que me deixou muito entusiasmada para continuar a acompanhar esta coleção. Ficaram com vontade de o fazer também?