Agosto tem trazido uma maré de sorte no que diz respeito às minhas leituras — depois de ter encontrado recentemente alguns dos meus livros favoritos do ano, eis que As Primas de Aurora Venturini chegou para me surpreender a cada página. Tinha ficado de pulga atrás da orelha depois de ler reviews incríveis e reviews péssimas, mas não me arrependo de o ter comprado na Feira do Livro de Lisboa.
Começo por dizer, caso ainda não saibam, que a argentina Aurora Venturini escreveu a vida toda, mas só conseguiu algum reconhecimento aos 85 anos, depois de este As Primas ter vencido os prémios Nueva Novela (Argentina) e o Otras Voces (Espanha). É a prova de que nem sempre o talento é suficiente para atingir um lugar de destaque no mercado literário, mas que vale sempre a pena dar a conhecer estilos diferentes — e se há uma palavra que descreve a experiência que tive a ler este livro, é essa mesmo: diferente.
As Primas leva-nos até à Argentina dos anos 1940 e conta-nos a história de uma família disfuncional, condenada pelo contexto. É narrada na primeira pessoa por Yuna, uma jovem descrita como “deficiente”, que tem grandes capacidades artísticas e que consegue começar a fugir das dificuldades familiares (tanto financeiras como de dinâmica) com a ajuda dos quadros que pinta. A arte vai sendo, aliás, um escape e a maneira que Yuna tem de conseguir processar e compreender o que se passa à sua volta.
Mas tudo passa neste mundo imundo. Por isso não é lógico afligirmo-nos muito por nada nem por ninguém.
A relação que se vai estabelecendo entre Yuna e Petra, as duas primas, é tão real quanto cómica, e este lado trágicocómico é muito bem conseguido pela maneira como a personagem de Yuna fala com o leitor. A certa altura explica-nos que usar pontuação a cansa, mas que está a tentar escrever melhor para ser entendida por quem a lê — senti que esta escrita em modo “fluxo de consciência” funciona extremamente precisamente porque a personagem de Yuna está bastante bem construída.
E agora deixo a nota à editora: por favor, tragam-nos mais livros de Aurora Venturini traduzidos para português! Não vamos replicar o que aconteceu com As Primas e deixar que o sucesso desta mulher se resuma a apenas um livro. Tenho mesmo muita vontade de ler mais coisas dela e espero que vocês tenham ficado com curiosidade em ler este. Ficaram? 👀
A oferta de audiolivros no Scribd nunca deixa de me surpreender e acabo sempre com uma lista interminável de livros para ouvir — muitos deles que só conheci porque a plataforma mo sugeriu. Craigslist Confessional, de Helena Dea Bala, chamou-me a atenção pela capa e pelo título, prometendo ser uma colecção de segredos de pessoas estranhas e anónimas.
Na introdução do livro, a autora explica que tudo começou quando se lembrou de pôr um anúncio no Craigslist (uma espécie de classificados online dos EUA), onde pedia às pessoas que lhe contassem qualquer coisa sobre elas. Recebeu uma série de respostas ao pedido e começou a encontrar-se com essas pessoas em cafés, para ouvir as suas histórias — e foram tantas, que teve de deixar o emprego para conseguir ouvir e registar todas.
I wish there was a label you could wear that told people everything they needed to know about you. I feel like it would make people so much kinder to one another—to know of people’s troubles and burdens, and be more considerate of them. Mine would say—Maddy: good person, hard worker, grew up poor. Trying her best.
Inicialmente compilados numa coluna e, depois, num site próprio, estes relatos anónimos culminaram na publicação de um livro, onde estão divididos em quatro temas: amor, arrependimento, identidade e família. São sempre testemunhos muito reais e crus, que nos contam episódios da vida destas pessoas que talvez não tivessem partilhado antes — por isso mesmo, este livro fez-me pensar muito acerca da facilidade que temos em partilhar coisas com desconhecidos e não tanto com as pessoas das nossas vidas.
São histórias relativamente curtas, que podem ir ouvindo em viagens mais curtas de carro ou enquanto fazem tarefas mais mecânicas por casa. E, se ficaram com vontade de experimentar o Scribd para ouvir audiolivros, podem usar este meu link para terem também acesso a 60 dias grátis (eu recebo o mesmo em troca). Agora, contem-me: já conheciam este livro? Ficaram com vontade de o ler ou ouvir?
Nada como começar por ser directa e dizer que este é um dos melhores livros que li este ano — um daqueles que me marcou durante a leitura e no qual não consegui ainda parar de pensar. Tenho a certeza de que irá ficar comigo durante muito tempo e que quererei relê-lo mais tarde, em certos momentos da minha vida.
A História de Roma conta várias histórias, e apenas algumas versões dessas histórias, mas a principal é a de um casal que esteve junto há uma decada e que se reencontra no presente da narrativa, quando ele visita Lisboa, a cidade dela. Durante uma semana, percorrem vários locais e recordam os tempos em que estiveram juntos: a forma como se conheceram, os desejos incompatíveis, os encontros e reencontros em diversos pontos do globo.
Joana Bértholo leva-nos pelas ruas de Buenos Aires, de Lisboa, de Berlim, de Marselha e de Beirute, ao mesmo tempo que nos mostra como é que essas cidades tiveram influência na relação entre estas duas personagens ou o contrário, até — como é que eles vivenciaram estes locais tendo em conta o estado da relação naquele momento. É um livro sobre a maneira como construímos as memórias e as nossas versões dos acontecimentos, e sobre o que acontece quando confrontamos as nossas recordações com as dos outros.
Vi muito de mim neste livro, por isso admito que tenha sido uma leitura bastante pessoal; em certos momentos, visceral. Joana Bértholo tem um cérebro fascinante e é interessante nunca percebermos quais são as fronteiras entre ficção e realidade: é um livro autobiográfico, é tudo inventado ou é uma mistura das duas coisas? Além disso, reflecte bastante acerca da maternidade, dando-nos a perspectiva das mulheres que escolhem não ser mães. Tendo em conta que, ao dia de hoje, os meus planos futuros e a minha realização enquanto pessoa não passam por ser mãe, senti-me bastante representada nesta protagonista.
Ele e eu fomos próximos da forma desapegada e intermitente que é a única que tenho de ser próxima de alguém. Era dele o eixo que estruturava o meu viajar: norte, bússola, não ter medo de me perder. Mesmo antes dos movimentos além-fronteira, foi ele o contraponto ao temperamento volátil da minha mãe. Penso: talvez ser mãe esteja ligado a ser filha. Pode ser que a filha que eu fui determine em parte a mãe que poderia ter sido. Tanto quanto não-sido.
A escrita desta autora não é simples, há momentos em que é provável que precisem de um dicionário, mas não deixem que isso vos demova — sobretudo se gostarem de livros com reflexões mais profundas, mesmo que não aconteça assim tanta coisa. Sei bem que não é um livro para toda a gente, mas experimentem dar-lhe uma oportunidade.
Adiei a leitura de Nightcrawling durante algum tempo, uma vez que já tinha ouvido várias pessoas falar muito bem dele. Então, para não me desiludir, decidi dar um compasso de espera. Fiz muitíssimo bem — ou então o livro seria sempre bom, independentemente da altura em que fosse lido, já que o posso considerar uma das melhores leituras do ano.
Passado em Oakland, conta a história de Kiara, uma jovem que se vê sozinha e responsável por si e pelo irmão, depois de ter perdido quase toda a família (uns morreram, outros foram presos). Embora seja mais nova do que o Marcus, Kiara sente o peso de ter de garantir que conseguem pagar a renda do apartamento onde vivem. Anda em busca de vários trabalhos que ajudem a sobreviver de dia para dia, até que encontra uma forma de subsistência que, não sendo aquilo que quer, é aquilo de que precisa. Kiara passa então a ser prostituta, sem esperar que o seu destino fique nas mãos da polícia de Oakland. Vê-se envolvida num escândalo e o resto é a história do livro, que eu não vou explorar mais para não estragar.
Mama used to tell me that blood is everything, but I think we’re all out here unlearning that sentiment, scraping our knees and asking strangers to patch us back up.
A melhor forma que eu tenho de descrever este livro é que me deu a sensação de ser um cruzamento entre a série Euphoria e a música Blue Lights, da Jorja Smith — se conhecem e gostam de ambos, certamente que é a leitura certa para vocês. As personagens estão todas muito bem desenvolvidas, são todas pessoas que poderiam perfeitamente existir, uma vez que têm camadas e cometem erros. E os acontecimentos que a autora relata são todos verosímeis, não há aqui nada que não pudesse acontecer na sociedade que é retratada em Nightcrawling.
Embora toda a história e contexto sejam bastante pesados, a escrita de Lelia Mottley traz uma grande sensibilidade e uma dimensão poética, duas coisas que podemos não associar a estas temáticas. Sendo esta a sua estreia em ficção — e tendo em conta que tem apenas 21 anos —, escusado será dizer que fico com muita vontade de ler mais coisas dela. Ficaram com vontade de conhecer a escrita dela, também?