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Rita da Nova

Qua | 17.03.21

Convenience Store Woman, Sayaka Murata

Uma das coisas de que mais gosto neste cantinho que aqui construí (e, de certa forma, também no Uma Dúzia de Livros), é a troca constante de opiniões e sugestões de livros. Fico genuinamente feliz quando alguém, mesmo que não me conheça, me manda uma mensagem e diz “olha, li este livro e acho que és capaz de gostar também”. Foi assim que aconteceu com o Convenience Store Woman, de Sayaka Murata. Não me recordo ao certo quem foi, mas guardei a sugestão e acabei por encomendá-lo na minha última compra no BookDepository. 

 

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É um livro tão pequenino que quis fazer dele a minha leitura de domingo passado, depois de ter reservado o dia só mesmo para isso – sabe tão bem quando é possível fazê-lo. A premissa é muito simples e a forma como a história se desenrola também: Keiko tem 36 anos e passou os últimos 18 a trabalhar numa loja de conveniência. Ela não tem o que pode ser considerado, pelas leis da sociedade, um percurso típico: nunca namorou, casar não está nos planos dela, não compreende porque é que há-de querer uma carreira e desde criança que sente que não pertence, que não sabe orientar-se no meio das outras pessoas e ser normal como elas. 

 

Na loja de conveniência, Keiko aprende a navegar no meio da sociedade; é lá que percebe como deve falar, o que deve dizer e o que deve fazer para que as pessoas a considerem igual a elas. A loja de conveniência é quase como uma parte integrante dela e as duas rotinas formam o ambiente em que se sente mais confortável. O que é que acham que acontece quando um elemento estranho entra nesta equação aparentemente perfeita e a motiva a deixar de trabalhar nesta loja? Eu não vos vou contar, que quero que leiam este livrinho. 

 

After all, I absorb the world around me, and that’s changing all the time. Just as all the water that was in my body last time we met has now been replaced with new water, the things that make up me have changed too.

 

Fez-me lembrar muito o Eleanor Oliphant is Completely Fine, que eu adorei, mas aqui adaptado à realidade japonesa e a todos os standards que lhe conhecemos, sobretudo as pressões relativamente à carreira e a ser útil para a sociedade. Está escrito com um sarcasmo muito leve, fez-me rir em certos momentos e pensar muito noutros. Acho que todos temos muito a reflectir com a Keiko e essa reflexão torna-se ainda mais importante numa altura em que, trabalhando mais em casa, os limites entre vida pessoal e trabalho se esbatem mesmo que não queiramos. 

 

Se não conheciam, recomendo mesmo muito que o adicionem à vossa lista. Agradeço muito à pessoa que mo recomendou, cujo nome não me lembro, mas está no meu ❤️!

Ter | 16.03.21

Fahrenheit 451, Ray Bradbury

Como já vos tinha dito a propósito do tema de Março d’Uma Dúzia de Livros, há uns anos tinha tentado pegar em Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, mas houve qualquer coisa que me impediu de avançar logo nas primeiras páginas. Fiquei espantada porque, supostamente, teria todos os ingredientes para me cativar: é uma distopia centrada em livros e é muitas vezes considerado um clássico. 

 

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Acredito cada vez mais que há livros próprios para certas alturas e que, às vezes, nos cruzamos com o livro certo na altura errada – aprendi a compreender os meus ciclos de leitura, a entender que para mim não funciona ler vários livros pesados de uma assentada e que preciso de ir intercalando leituras em inglês com leituras em português, assim como digital com físico. Quando peguei neste livro pela primeira vez não tinha tanta consciência dos meus ritmos enquanto leitora e achei mesmo que talvez não funcionasse para mim. 

 

Mas agora, vários anos depois, peguei-lhe e li-o bem depressa. Curioso, não é? Explicando, para quem não conhece, do que se trata: Fahrenheit 451 passa-se numa altura em que os bombeiros deixaram de apagar fogos para pegar fogo a todos os livros que apanham; quem é visto a ler livros é considerado louco, uma vez que a leitura se tornou ilegal. O nosso protagonista, Guy Montag, é um desses bombeiros, que começa aos poucos a tentar descobrir o que são os livros e porque é que são demonizados. 

 

Guy Montag passa de mau da fita a herói quando começa a tentar salvar livros – se consegue e qual o desfecho desta história é algo que terão que descobrir através da leitura, que eu não estou aqui para estragar nada a ninguém. Em traços gerais lembrou-me muito o 1984, mas acho que é porque quase todas as distopias são inspiradas, de certa forma, nesta obra.

 

Everyone must leave something behind when he dies, my grandfather said. A child or a book or a painting or a house or a wall built or a pair of shoes made. Or a garden planted. Something your hand touched some way so your soul has somewhere to go when you die, and when people look at that tree or that flower you planted, you're there. It doesn't matter what you do, he said, so long as you change something from the way it was before you touched it into something that's like you after you take your hands away. The difference between the man who just cuts lawns and a real gardener is in the touching, he said. The lawn-cutter might just as well not have been there at all; the gardener will be there a lifetime.

 

Em traços gerais é um bom livro, levanta discussões importantes sobre censura, a estupidificação da sociedade de massas, a importância de cultivarmos a curiosidade para além das dos filmes que todos vêem e dos livros que todos lêem. Para além disso, mostra também que todos podemos fazer a diferença, mesmo que na nossa ignorância estejamos a fazer algo de errado – temos sempre capacidade de aprender e lutar. Ainda assim, estava à espera que o livro me marcasse mais do que marcou, provavelmente pela antecipação de o ler e pela segunda oportunidade que lhe dei. Acho que o li tarde no meu percurso de leitora e, depois de me ter cruzado com tantos livros, este não me chegou especialmente ao coração. 

 

De qualquer das formas, é mesmo um clássico, tanto para quem gosta de distopias como para quem está à procura de um livro para se iniciar neste género. Contem-me lá: há por aí alguém que está em falta com este, como eu estive durante tanto tempo? 

Qui | 11.03.21

Weather, Jenny Offill

Sabem aqueles livros que conseguem mesmo capturar a essência do que é estar vivo nos dias de hoje? Que não têm necessariamente uma história complexa e incrível, mas que ganham a nossa atenção pela carga humana que encapsulam e conseguem transmitir? Pois bem, Weather, de Jenny Offill, é precisamente um desses livros. 

 

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Escrito numa mistura entre prosa poética e pequenas entradas de diário (sem o ser assumidamente), leva-nos a acompanhar a vida de Lizzie em todas as suas componentes – é mãe, esposa, bibliotecária num campus universitário, irmã de um ex-viciado em drogas em recuperação, entre outras coisas. É quando é convidada por Sylvie, uma antiga mentora, para responder aos e-mails que recebe a propósito do podcast que grava e onde aborda o futuro da humanidade. 

 

Desta maneira, o livro acaba por tocar em vários temas que são importantíssimos nos dias de hoje – entre outros, o fim do mundo (mais ou menos apocalíptico), as alterações climáticas e a razão da nossa existência. Passando-se em 2016, não pode também deixar de endereçar o que as pessoas sentiram nos Estados Unidos depois da eleição de Donald Trump. A autora faz isto de uma forma muito interessante, em que a vida de Lizzie é sempre o foco e estes temas vão aparecendo à medida que a própria personagem se vai dando conta que está a envelhecer e, talvez, esteja a entrar numa fase totalmente nova da sua vida. 

 

My question for Will is: Does this feel like a country at peace or at war? I’m joking, sort of, but he answers seriously. He says it feels the way it does just before it starts. It’s a weird thing, but you learn to pick up on it. Even while everybody’s convincing themselves it’s going to be okay, it’s there in the air somehow. The whole thing is more physical than mental, he tells me. Like hackles? The way a dog’s hackles go up? Yes, he says.

 

Weather não mudou a minha vida, mas fez-me pensar muito nesta coisa de ficar mais velho e se haverá, de facto, uma relação entre o envelhecimento e ficarmos tendencialmente mais pessimistas. Lê-se bem, é curtinho e está extremamente bem escrito, com bastante sarcasmo, quase como se fossemos navegando nos pensamentos da personagem principal. Podem ler à vontade, que é bom! Já tinham ouvido falar? 

Qua | 10.03.21

Trust Exercise, Susan Choi

Já não sei bem como me cruzei com o livro Trust Exercise, de Susan Choi, mas lembro-me de ter lido ou ouvido algures que tinha uma aura muito Sally Rooney. E o que é que esta que vos escreve faz quando dizem que certo livro lembra a escrita da Sally? Vai ler, pois claro. Ora bem, a escrita até que pode ser semelhante em alguns pontos, mas achei a leitura deste livro bem mais penosa e complicada do que esperava.

 

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Começando pelo enredo: a primeira parte da história passa-se nos anos 80, onde acompanhamos um grupo de alunos de uma escola elitista de artes performativas na sua transição de adolescentes para adultos – e todas as dores e dificuldades que isso acarreta. Mas é aqui que a autora nos tira o tapete porque, quando passamos para a segunda parte do livro, percebemos que até então estivemos a ler um livro dentro do livro. É interessante este paralelismo entre os exercícios de confiança que os alunos vão fazendo no livro e a experiência de o ler, onde também temos que ir fazendo o exercício de confiar na autora e nas suas artimanhas de escrita. 

 

A partir da segunda parte entendemos que o livro escrito por Sarah, uma das personagens principais, é altamente baseado em factos verídicos daquele grupo de amigos e vamos assistindo à forma como o que ela escreveu afecta as pessoas envolvidas na história, assim como as faz recordar o passado e a percepção que têm dele. Toca em vários temas comuns a esta fase da vida (sexualidade, consentimento, propósito, autonomia, etc.), mas fá-lo de uma maneira tão natural e madura que eu demorei a perceber que estes alunos eram adolescentes com apenas 15 ou 16 anos. 

 

Theirs was a love she had rejected by reflex because of its very simplicity, its undiverted, untranslated eruption from the heart of the guts or wherever such feelings came from. Sarah didn’t have such feelings anymore. 

 

Trust Exercise é, à falta de melhor palavra para o descrever, uma grande fritaria. Não apenas pela escrita intrincada e por estes pequenos exercícios que Susan Choi vai fazendo connosco, leitores, mas também porque saltamos constantemente entre personagens, perspectivas e flashbacks. Para além de tudo isso, não há capítulos entre estas três partes e há pouco espaço para descansar na escrita. Apesar disso, a escrita da autora é irrepreensível, o que eu acho engraçado porque foi mesmo difícil de ler.

 

Once you’re old enough to recognize a hole in yourself it’s too late for the hole to be filled. 

 

Sendo um livro curto, com cerca de 200 páginas, torna-se uma leitura demorada e cansativa, mas isso não significa que não valha a pena – acho só que é preciso estarmos no mood certo e irmos preparados para esta experiência. Eu não estava e acho que isso fez com que demorasse muito tempo a sentir empatia com a narrativa e personagens. Só quando entendi que, na segunda parte, tínhamos entrado na “realidade” do livro é que efectivamente me interessei mais. 

 

Alguém desse lado tinha ouvido falar da escritora e deste livro? Já sabem, a minha recomendação é que saibam ao que vão antes de embarcarem neste Trust Exercise.