Comer em casa? "A Rita não quer.”
Há uma piada – que, de tão idiota, nem devia chamar-se assim – em que o marido chega a casa e a mulher o recebe com um “Amor, hoje vamos jantar fora! Pus a mesa no quintal”. Com ou sem graça (definitivamente sem graça), a anedota dá força a uma ideia que me parece mais ou menos evidente: a maioria das pessoas gosta de ir comer fora.
Preferimos o cheiro a grelhados de alguns restaurantes ao Ambipur Fresh versão marca branca que comprámos para pôr na sala, não nos importamos de comer com talheres desinfectados (sabe-se lá como) naquelas mini máquinas de lavar loiça e – mais importante – pagamos uma conta exorbitante quase de lágrimas nos olhos, enquanto sacamos de uns míseros euros para deixar em cima do talão que veio até à mesa deitado num pratinho de metal.
Alguns de nós vão a restaurantes porque não sabem sequer distinguir um alho de uma cebola, outros fazem-no porque estão demasiado cansados para cozinhar, mas há ainda uma outra categoria, na qual admito inserir-me: aqueles que fazem refeições fora de casa porque simplesmente gostam. Ora, a história de como me tornei uma dessas pessoas – que embora saibam cozinhar e o façam com satisfação, têm ainda mais prazer em experimentar restaurantes – começa algures em meados dos anos 90.
Entre os quatro e os seis anos passei por aquilo a que a minha família, não sem uma pitada de irritação, chamou “ser um pesadelo para comer”. À hora de almoço não havia comida que passasse por esta goela e, como qualquer criança que se preze, conseguia levar a minha avante com especiais requintes de malvadez. A minha santa Avó já só comprava e preparava coisas que me agradassem, mesmo sabendo que o mais provável era ouvir um “a Rita não quer”.
Era vê-la a correr para o balcão da cozinha, a apertar o avental à cintura que nem um super-herói a colocar a capa, balbuciando promessas de conseguir salvar o dia. “Pronto, pronto, não faz mal, vamos lá arranjar qualquer coisa”.
- E uma bananinha com bolacha, assim tudo migadinho? Queres, Ritinha?
- Quero! – dizia eu, sorridente.
Cheia de falsas esperanças, convencida que daquela vez seria na mouche, a Super Avó agredia uma banana com um garfo bem pontiagudo, ao mesmo tempo que reduzia uma série de bolachas Maria em pó e misturava tudo com alguma agressividade nos punhos. Punha-me o prato à frente.
- A Rita não quer.
E a história repetia-se até ser hora de jantar.
Ninguém se lembra muito bem de quando nem como surgiu a solução para este problema, mas a chave para me pôr a comer morava – literalmente – ao lado. Durante muitos anos morámos numa rua de vivendas geminadas, uma rua em que toda a gente se conhecia e se falava para além de um “bom dia” despachado.
Fui cobaia de todos os estratagemas alguma vez criados para conseguir pôr uma criança embirrante a comer. Utilizaram a técnica do avião, mas não havia meio de me convencerem a abrir a boca e a colher de Cerelac via-se obrigada a fazer uma aterragem de emergência dentro da tigela. Experimentou-se a táctica altruísta: “Vá, esta colherzinha é para o primo. Esta agora é para os meninos pobrezinhos. E esta colherzinha é para o periquito”. Se era para os outros, porque é que tinha de ser eu a engolir? Em desespero, ainda tentaram convencer-me pelo medo. Eu queria lá saber: o Papão e o “Homem do Trovão” que viessem, que eu lá estaria para os enfrentar.
Um dia (não se sabe qual), alguém (não se sabe quem) teve a feliz ideia (não se sabe como) de me perguntar se eu queria “ir almoçar à casa da Dona Aninhas”, a vizinha do lado. Aceitei imediatamente a proposta e lá fui, sem acenar adeus àqueles que ficaram sentados à nossa mesa.
- Então, a Ritinha comeu bem? – perguntou a minha Avó, ao meu regresso, já certa de que a resposta seria negativa e viria acompanhada de um “mantenha esse ser diabólico longe da minha sala de jantar”.
- Se comeu bem? Fartou-se de comer. Se ela não jantar, não fique preocupada.
A partir de então, passei a ir comer à casa da Dona Aninhas quase todos os dias. Para não sobrecarregar a pobre senhora e respectiva família, a Super Avó delineou logo uma estratégia.
Aproximava-se a hora da refeição e tentavam pôr-me a comer. A Rita não queria. Então, faziam a pergunta do costume: “queres ir comer à casa da Dona Aninhas?”. A esta altura, era preciso agir depressa. A minha tia levava-me para a sala, calçava-me os sapatos, dava-me conselhos de como me comportar em casa de outros, pegava-me pela mão e ia entregar-me à porta da frente da Dona Aninhas. Enquanto isso, a minha Avó voava na cozinha, punha a comida que havia preparado dentro de caixas, tupperwares e bolsinhas. Escapulia-se pelas traseiras e passava o arsenal gastronómico por cima do muro ao Senhor Manuel, marido da vizinha, que tratava de pôr tudo em pratos limpos o mais depressa possível.
Quando finalmente regressava ao lar, passadas duas ou três horas, deixava todos boquiabertos ao perceberem que não só tinha comido aquilo que a minha Avó havia contrabandeado pelo quintal, como ainda tinha dado umas belas trincas ao almoço dos vizinhos. Depois disso ainda enfardara um iogurte, uma fatia de bolo e, em dias felizes, uma ou duas peças de fruta.
Moral da história: eu não era “um pesadelo para comer”. Eu gostava mesmo era de fazê-lo fora de casa.